sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Abrigo encantado

Pelas velhas janelas, 
O casarão me observa.
Com a porta aberta, 
Sorri desdentado. 
Abrigo encantado, 
Que o mundo despreza.
Foi salão de festas,
Palco iluminado.
Hoje, abandonado, 
O mato lhe cerca, 
A chuva atravessa 
O antigo telhado, 
O vento soprado 
À noite, revela 
Que em sua miséria, 
É mal assombrado.

Sepultamento

Os meus olhos pregados
no infinito
como os pregos nas tábuas
cravejados,
e de pontas viradas,
redobrados,
sustentados e fixos
numa curva.
No aconchego da madeira macia,
minhas costas
nos ossos da bacia
consolam meu corpo
tão curvado.
Pelo tempo que tenho acumulado,
a ferrugem do mundo
me comeu,
e a tampa que pregam
me prendeu
para sempre num rito consumado.
Por debaixo da terra
condenado
a ser parte da mesma
e não ser eu.

Ante o passar dos anos

Quando nos apaixonamos,
Eu dizia: eu te amo,
Toda hora, todo dia.
Nossa casa se enchia
De eu te amo.
Mas o tempo foi passando,
O eu te amo sussurrando,
Pouco a pouco mal se ouvia.
O que a gente não sabia
Era que se calaria
Ante o passar dos anos.
Não por nossos desenganos,
Nem pela monotonia.
Mas por simples agonia,
Silencia,
Sem que nós nos percebamos.

De vento em popa

Sua escolha parece ser boa;
Por que lhe pertence.
A minha por ser diferente,
Com certeza é tola.

Você quer o melhor para a gente.
Coitadinho de mim, um demente
Que fala à toa.

Do barco, você é a proa,
Pois está à frente.
Mas lembre que levo o leme,
Por eu ser a popa.

Sua voz comovente ecoa:
É Ele o Messias, me siga.

Aquele com o Rei na barriga?
O Rei que está sem roupa?

E você com a voz muito rouca,
Com o dedo em riste me julga,
Que eu sou um ateu imoral,
Que há escolha entre o homem sem culpa
E o cara do mal.

Eu não acho que uma pessoa
Deva seguir a outra
Que não vive a vida real.

O mendigo que tosse

Se uma tosse percorre meu pescoço
A procura de um osso prá roer
É a fome que come
O meu nome
Com uma sede que cede
Ao querer.

Minha palma espalma um pedido.
Meu olhar tão comprido,
Nem me vê.
Não consigo descrer
Que sou mendigo.
Mas duvido que seja mais difícil
Se acredito que posso
Sem poder.

Já não dou ouvido às mesmas palavras

Não reconheço meu caminho, porém sigo.
Quem serão meus inimigos, desconheço.
Hoje esqueço, o que fora imprescindível.
Se eu ficava acordado, adormeço.

Virou riso,  o mais crítico segredo.
Meu fascínio se tornou aborrecido.
Destemido, o que tinha tanto medo.

Eu mudei a opinião que sustentava.
Minha casa tem a paz dos falecidos.
Já não dou ouvido às mesmas palavras.
De uma fé consolidada, ceticismo.

Talvez seja minha idade, o motivo
Para acreditar que o nada
É o meu existencialismo.

Apenas um deles

Se me tomarem por sombra
De uma porta entreaberta...
Meus olhos espreitam as velas
Do morto sendo velado.
De todos, menos culpado,
Pois já não creio na espera
Além do corpo enterrado.

Se me tomarem por sábio
Que do saber observa...
Do pasto, a mesma erva
Que alimenta o gado;
O verme no chão molhado
Que se oculta na terra,
Na cova do sepultado.

Se me tomarem por cama
De um bêbado adormecido...
Na esperança do esquecido
De jamais ser encontrado.
Como um braço amputado,
Sou o membro invisível
Que deseja ser lembrado.

Se me tomarem por único,
Serei apenas um deles.

Entre pátria e cidadão

Que minhas mãos lhes sirvam de bandeja
Todo o pão que baste em minha mesa
E cada grão que falte em sua casa.

Que os meus olhos vejam o que se passa
Por trás da porta que à sua dor se fecha.

Que minhas posses abrandam suas queixas
Por serem feitas daquilo que lhe falta.

Que minha ação enxugue suas lágrimas
Pela vergonha desperta em seu perdão
Sou sua pátria, você meu cidadão.

Acordamos

De olhos puídos sob a aurora
Nos dias de nosso convalescer,
Buscamos nos sonhos a primazia de sermos livres.
E não estávamos sós.
E éramos nós,
Falsos heróis sem cicatrizes.

Dividimos a cama sob lençóis vazios
E de pé ante nosso leito febril,
Desejamos mortificar a nossa dor.

Temíamos a dúvida pela certeza
De que ficara na mesa,
Uma única xicara de chá.

Então choramos quando sonhamos
Que não éramos reais.
E libertos de nós mesmos, acordamos

No fim somos heróis

Não acredito em heróis,
Apesar de todos nós
Sermos os heróis no fim.
Nesse campo de batalha,
Onde cada um amarga
Seu gole de conicina,
A derrota nos ensina
Que a miséria é muito ingrata
E que a riqueza nunca basta
Para quem está por cima.

Entre costuras

Tenho vontade de tramar ternura
Em colares de amores ressentidos,
Adornar vestidos com babados de doçura,
Descoser as linhas que sustem a angústia 
E entre costuras de sonhos bons, 
Desatar laços de esperança e otimismo.

Em camisas abertas ao desespero,
Pregar botões de alegria e dinamismo.
Coser com ponto miúdo os bons amigos
E alinhavar os fúteis cós dos desmazelos.
E entre costuras de sonhos bons, 
Cortar tecidos macios e coloridos. 


SOMOS NÓS DOIS

 Saímos de casa a sós, A procura de nós mesmos. Encontramos um ao outro, Sem temores, nem segredos. Na união de nós dois, Vislumbramos um ca...